terça-feira, 2 de outubro de 2007

pegaDInhA DOS NAMORADOS

Ela acordou sentindo que aquele talvez não tivesse de ser um dia tão diferente. O lado esquerdo da cama quase intocado confirmava que a noite passara despercebida. Sim, era dia dos namorados e ela estava sozinha. No entanto, nesta manha dedicada aos amantes, decidiu que não se deixaria abalar.
Lavou os cabelos com o novo shampoo, se arrumou e carregou sua esperança nas costas todo o caminho até o trabalho. Lá deu o seu melhor (dentre jogos de paciência e textos inventados) e seguiu sua nova vida para pegar o carro mal estacionado na rua da frente, com destino à faculdade.

Já nos primeiros metros, reparou que motoristas irados esbravejavam palavras que ela logo se apressou para não ouvir, fechando os vidros e aumentando o som. Este som de fato ajudou pouco, já que era apenas rádio FM e logo após a entrada do túnel transformou-se em um fino e irritante chiado. O transito estava apenas um pouco congestionado, tudo bem.

Quarenta minutos depois avançara o bastante para que o som voltasse a tocar e, com muito bom humor, ela atendeu ao telefone celular:
-Alou?
-Oi amiga, onde você está?
-To no transito.
-Transito pra onde?
-Bom, primeiramente eu estava indo a faculdade, agora já acho que vou pra onde quer que esse engarrafamento esteja indo. Ou melhor, lugar algum.
-Nossa, mas você é dramática hein! Olha só, to aqui no barzinho da praia com o Wagner, passa aqui, ok?
-Ta bom, tchau.

“Ótimo, segurar vela é comigo mesmo”, pensou. Ainda assim, o pensamento se desviou completamente quando ela percebeu que o maior ônibus da sua vida tentava insistentemente passar a sua frente – “Ah, mas eu não deixo mesmo!”.
E assim se seguiram os próximos vinte minutos, uma arrancada dela, uma investida dele, os dois disputando vigorosamente pela traseira do carro vermelho à frente. Mais uma vez o celular:
-Alô?
-Oi amiga, onde você ta?
-Não posso falar, estou num rally dos sertões ao contrário.
-Como assim, vc ta aonde?
-Rally dos Sertões, sabe? Eu e o motorista de ônibus abusado disputando uma corrida no engarrafamento. Em um segundo perde-se a vaga. Ei!, pera aí, acho que ele ta tentando dizer alguma coisa.. já te ligo!
De fato, o motorista do ônibus acenava sistematicamente para ela, incentivando a rixa entre os dois.

Algum tempo depois:
-Ai o que é?
-Amiga, to preocupada, já tem uma hora desde que eu te liguei. Aonde você ta?
-Eu avancei 20 metros desde a sua primeira ligação. Ai, merda! O viadão me passou! Ta vendo, você foi me distrair. Ótimo, ele ainda tem a cara de pau de me sacanear!
Já às gargalhadas, de fato o motorista a reverenciava diante do belo combate que vivenciaram. Mais duas horas no engarrafamento e eles esqueceriam um do outro.

Os carros amontoados avançavam lentamente e, em cerca de mais uma hora ela tinha chegado ao centro. Triiiiim:
-Se você me ligar mais uma vez..
- Oi prima, sou eu.
- Ah, desculpa. Achei que fosse uma amiga.
- Escuta você ta na faculdade, né? Tem como me buscar aqui no shopping?
- Na faculdade? É, já to saindo. Vamos fazer um trato. Preciso ir segurar vela da minha amiga, vai comigo e eu te busco!
- Ta, sem problemas. To te esperando na porta.

Por sorte o retorno estava próximo. Rapidamente todo o estresse de uma vida perdida no engarrafamento desapareceu de seus pensamentos e ela desfrutou deliciada da corrente de ar (provocada pelo movimento de seu carro) nos cabelos. Mas assim que abriu os olhos, lá estavam todos eles. Aqueles pontos de luz vermelha logo à frente, dizendo a ela que os carros estavam parados. “Ah, não!”.

Meia hora (ou três quadras) depois ela percebeu: “Eu estou no engarrafamento errado!”. Mais quinze minutos e conseguiu fazer o retorno, alcançou o engarrafamento certo, chegou ao shopping e encontrou a prima.
- Caraca, já ia ate desistir de pegar carona. Você demorou séculos.
- Por favor, não começa. Estou há quatro horas no transito pra não chegar a lugar algum. Nem na faculdade deu tempo de ir. Agora vamos embora que eu ainda tenho mais dois engarrafamentos pra pegar.

Não demorou muito. Sim o transito continuava lento, mas logo depois da curva tudo estava limpo. Ignorando o fato de não haver a menor explicação para o congestionamento pré-curva ela acelerou. Mas algo havia de errado:
- Ai agora o quê? Acostumou a andar devagar, é?

Não, não podia ser. Como ela pôde esquecer?

- Prima, o que foi? Você ta ficando verde!
- Há! Acho que estamos sem gasolina.
E o carro, como se atendesse à constatação anterior, morreu.

“Hoje, com certeza é o meu dia!”, afirmou ao tentar ligar para sua mãe, pai e irmão –sem qualquer retorno.
-Tudo bem, você fica aqui que eu vou ao posto comprar a gasolina.
- Ah, porque eu que tenho que ficar sozinha?
-Porque você não vai querer andar três quilômetros até o posto e voltar com 5 litros de gasolina debaixo do braço. Agora toma aqui o documento do carro e ignore as buzinas e xingamentos dos motoristas.

E assim ela foi, quase que descrente de tudo o que havia passado, atravessou uma inauguração de restaurante e, ao finalmente chegar ao posto, constatou que estava fechado para obras. “Mas é claro que não podia ser tão fácil!”. Três quadras a mais e avistou o próximo posto:
-Boa noite, o meu carro.. bem, como posso dizer..é..Olha só, meu carro morreu na praia, literalmente. Eu preciso de uns 10 reais de gasolina em uma garrafa.
- Ah, pois não, tenho só esse galão.
-Certo.

Pagou, agradeceu e começou a fazer o caminho de volta. Andar com toda aquela gasolina, ainda mais sob dezenas de olhares suspeitos (ela não pôde evitar refletir sobre o que toda aquela gente pensava. Finalmente, chegou à conclusão de que achavam que ela iria queimar o apartamento do namorado, o carro do namorado ou mesmo o namorado), não foi fácil.. De repente começa a tocar o telefone ela, atrapalhada ao tentar achá-lo na bolsa, pingava gasolina por todos os lados.

Atendeu:
-Oi.
-Oi irmã, você me ligou. Tudo bem?
- Ah, claro, te liguei só pra bater um papo ótimo de como o carro enguiçou no meio da praia e eu graciosamente andei a minha vida inteira ate um posto fechado e agora volto com um tanque de gasolina nas mãos, a bolsa pendendo do dedo mindinho, o celular na outra e todas as amáveis pessoas que me olham como se eu fosse uma assassina. E você, tudo bem?
- Hahahahahahahahahaha.Quer ajuda?
-Ah, agora já era.
-Então tá, beijo.
-Beijo.

Chegando ao final da longa caminhada ela avistou o estrago que tinha causado. Uma avalanche de carros manobrando à volta do seu próprio, mal estacionado, obstruindo a rua estreita. Conversando com sua prima estava o guarda de trânsito.
-Boa noite.
-Boa noite.
-Esse veículo é seu?
-É sim senhor, me desculpe.. eu sei que deveria ter prestado a atenção,mas.. acho que o problema é gasolina.. não sei direito.. foi o engarrafamento, sabe.. muito tempo que me esqueci..
- Tendo um péssimo dia dos namorados, né?
- Ahn? Ah, bom, o senhor nem imagina!
- Eis o que a senhora vai ter de fazer.
-Sim. (com ares de que tudo estava perdido)
- Quando ligar o carro atente para o acelerador, ele vai ter de beber bastante para dar a partida. É só continuar acelerando antes de passar a primeira.
-Ah, o que? Não vai me prender, multar, remover o carro?
-Apenas acelere.
-Ok.
Ela pôs a gasolina e, o mais rápido possível arrancou, antes que ele mudasse de idéia, trocando o conselho pela multa.

Todos adoraram o relato de sua aventura mais tarde no bar, que logo resolveram trocar por outro mais barato. Lá, sua prima encontrou alguns amigos e o dia virou debate:
-Porque será que tem dia dos namorados e não tem dia dos solteiros?
Sim, alguém tinha que fazer o seguinte comentário:
-Porque todo dia é dia dos solteiros.
-Exceto hoje.
-Gente, dia dos namorados é a maior desculpa pros homens fazerem tudo o que devem fazer ao longo do ano em um dia. Enche a mulher de presentes, jantares românticos e tudo mais que eles odeiam. Pronto, estão salvos pelo ano. É quase como imposto de renda.
Entre “ah, não é bem assim..”, “mulher sempre tem que reclamar de alguma coisa..” e “você só diz isso porque ta solteira..” o dono do bar avisou que ia fechar. Discutiram um pouco e acataram a idéia de jogar sinuca e cantar no karaokê.

Ela e a prima dando show enquanto os meninos discutiam quem ia ficar para tentar um clima de romance e quem ia embora. Resolveram e ela, já prevendo o final da história (e não gostando muito) começou a dar sinais de sono.
Eram três casais agora, dois já resolvidos e o último ainda apenas promessa. Saindo de lá resolveram ir para a praia. Ela convocou as meninas:
-Gente, parem de tentar me arranjar. Luz do luar é sacanagem!
- Ah, para com isso você. O menino é bonitinho e tá todo se engraçando pra você. Porque será que ele não foi embora?
- Dã. Eu sei, mas.. não sei, eu não to querendo não..
-Ah não começa. Vamos logo e depois você pensa nisso. Se não quiser, não quis.
-Não, gente, eu não vou.

Foram. E tudo foi como ela pensara. Conversaram um pouco a grupo, logo a prima se isolou com um dos meninos a um canto. A amiga (já sem Wagner) se focou na solidão um pouco mais a frente. Ficaram ela e ele, conversando sobre nada:
-Ahnn, o que você faz da vida?
-Eu? Eu estudo e trabalho e você?
-Eu só estudo. O que você gosta de fazer?
-Bem.. eu.. eu gosto de..,etc.

A conversa mudara de rumo:
-Hoje está uma noite muito bonita, olha só quanta estrela!
-É, mas hoje eu só consigo olhar pra você.
-AH BEIJA LOGO, NÃO AGUENTO MAIS ESSE ‘NHENHENHE’! – interromperam.

E, após um breve momento de silêncio, eles se beijaram. Ela sentia como se estivesse tragada por aquele beijo. Bem, era mais como se afogasse. De repente ela percebeu que o menino entrava em um ritmo frenético, talvez tentando a engolir. “Era só o que me faltava”.
Seus olhos não estavam fechados e sim cerrados esperando o momento em que não seria mal educado parar.
Quando se separaram, ela avistou a amiga mais à frente, curtindo a depressão (do tipo clássico, inevitável claro, de madrugada na praia com dois casais) e ela ouviu sua salvação justamente pela boca que necessitava ser salva:
-Ela parece estar mal, você quer ir lá conversar com ela?
-Ah, claro! Quero dizer, é melhor, ne?

Foi.
- Ta deprimida, amiga?
- To sim, mas é quase bom. Não é nada demais não, pode voltar pra lá.
-Não, eu quero saber. Porque você está triste?
- Já disse, não é nada. Só melancolia de estar aqui sozinha e um pouco de saudade. É serio, eu estou bem.
- Uhn, entendo. Então vou ficar um pouco aqui com você.
- Não precisa amiga.
- Precisa sim.
- Não não precisa. Qual o seu problema hein?
- Entao ta, eu vou te falar. Não to agüentando o sex-appeal ali não. Vamos embora?
- Hahahaha, mais um beijo ruim? Menina, mas você ta com kharma!
- Eu sei, também já estou achando que é maldição.
- Então vamos. Pode dizer que eu que quero ir.
- Obrigada, vou dizer sim. Agora vamos logo que esse dia já passou da hora de acabar.

Despediram-se.

Ao chegar em casa ela reviveu mentalmente sua jornada repetidas vezes. Em algumas delas, quase não acreditava como exatamente tudo pôde dar errado em um só dia. Logo antes de dormir só conseguiu chegar a uma conclusão, um responsável.

Olhou para cima e decidiu tirar as contas com Ele: “Não bastava estar solteira, não é?!”.